segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O amanuense Belmiro - Material de estudo


O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos
Análise da obra


Podemos situar a obra O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, publicado em 1937, entre as produções dos anos 30/50, portanto pertencente à segunda e terceira gerações do modernismo. Porém, deve-se observá-la como uma linha introspectiva que começa a nascer, às vezes contrastando com o romance regionalista e, em outras, englobando o interior deste ser frente a todo um processo de evolução e decadência de uma sociedade para dar prosseguimento a outra.

Pertence ao que se poderia chamar o Lado B do Segundo Tempo do Modernismo Brasileiro (1930-45), pois não segue o filão principal desse período, que é o romance regionalista de preocupação política, como Vidas Secas, São Bernardo e Fogo Morto. É, de fato, uma obra dotada de extremo lirismo, retirado de cenas simples do cotidiano do protagonista. Lirismo de funcionário público (amanuense), profissão mergulhada no pequeno, no simples, no cotidiano. O político, quando aparece, é de forma tangencial, principalmente no que se refere aos desenlaces de Redelvim, amigo comunista de Belmiro.De linhagem psicológica, revelando profunda influência machadiana, porta-se como observador perspicaz e contido, utiliza-se freqüentemente de uma fina ironia, do pessimismo amargo e revela-se continuador da tradição memorialista que foi comum no romance do século XIX. O crítico português Adolfo Casais Monteiro, sobre O Amanuense Belmiro diz: "uma melodia como raramente o romance no-la dá, um bafo de vida a tal ponto real que desperta imediatamente tudo o que há de mais íntimo e secreto em cada um."  A primeira edição do livro data de 1936 e já consagra Ciro dos Anjos como um dos grandes prosadores da Literatura Brasileira, sendo essa sua principal obra, embora tenha escrito mais um outro romance, que recebeu o título de Abdias.

Sua pesquisa psicológica em O Amanuense Belmiro trabalha com vidas que se realizam mais na imaginação e menos na realidade: ao lado dos sonhos humildes que não chegam a se concretizar, a frustração imensa e impressentida dos pobres diabos. Romance de tensão interiorizada, isto é, o herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu / mundo pela ação: evade-se, subjetivando o conflito, consideremos ainda O Amanuense Belmiro, como um romance de educação sentimental, pois o escritor mineiro narra, em primeira pessoa, menos a vida que as suas ressonâncias na alma de homens voltados para si mesmos, refratários à ação, flutuantes entre o desejo e a inércia, entre o projeto veleitário e a melancolia da impotência. O diário é a estrutura latente desse tipo de narração. E o enredo tende a perder os contornos, as divisões nítidas, e a diluir-se no fluxo da memória que vai evocando os acontecimentos. Para configurar essa realidade aparentemente em mudança, mas, no fundo, estática e repetitiva, Cyro dos Anjos não privilegiou o monólogo interior: preferiu trabalhar com os recursos tradicionais do diálogo, do relato irônico, da análise sentimental; processos a que se ajusta com perfeição a prosa que elegeu para toda a sua obra: de uma elegância simples e clássica."

Estrutura da obra

O romance está dividido em 94 capítulos curtos, que são numerados e têm cada número precedido do sinal de parágrafo. Acontece que cada capítulo desse é dividido em vários parágrafos, então o que quererá significar com isso o narrador pseudo-autor? Parece-nos que quer chamar a atenção para o caráter episódico e para a pouca extensão de cada unidade dessas.

Foco narrativo

O narrador emprega foco narrativo em primeira pessoa por Belmiro Borba, personagem central, registrando de modo subjetivo e confidencial os acontecimentos e suas reflexões como que em um diário, em capítulos breves, que funcionam como crônicas. “Quem escreve um diário (afinal, estou escrevendo um...) não se pode furtar á sua própria contemplação. É um narcisismo a que ninguém escapa.” (p.55)

Belmiro é dotado de uma narrativa solta, esgarçada. Além disso, seu protagonista-narrador é uma figura dominada pela inércia – apaixona-se por Jandira, mas nunca teve coragem de confessar seus sentimentos, mesmo depois da perigosa declaração desta de que “precisava de um homem”. Essa estaticidade o faz mero espectador, acompanhando as desventuras de Redelvim, Glicério (jovem de grande agitação social), Jandira (que defende a liberação feminina, mas não se faz liberada), Florêncio, Silviano (mentiroso compulsivo e filósofo que só enxerga as alturas). O narrador só obtém colorido em sua existência quando começa a compor um diário. A literatura dá-lhe vida.

Tempo / Espaço / Ação

Predomina a ação interior, de andamento moroso. Essa morosidade ocorre principalmente por causa das interrupções provocadas por digressões e pela quebra da linearidade, com fatos presentes e lembranças de fatos passados se interpenetrando constantemente. Essas indas e vindas do texto colocam o narrador seu estilo numa tradição que vem de Laurence Sterne, Almeida Garret, Machado e Assis a Hilário Tácito.

Em O Amanuense Belmiro, há o predomínio do tempo psicológico, ou seja, os fatos da história são subordinados às impressões subjetivas do narrador-protagonista, Belmiro. Logo, haverá uma constante oscilação entre o passado e o presente, de modo que suas fronteiras se tornam cada vez mais tênues. Além disso, os fatos registrados no Diário são feitos de acordo com sua importância para Belmiro, nem tudo é registrado. Apesar desse predomínio do tempo psicológico, é possível reconhecer que o enredo é contado linearmente: o romance inicia-se no Natal de 1934 e vai até meados de 1936, seguindo uma progressão cronológica.

Vinculado ao tempo, o espaço também estará dividido entre o passado e o presente. As lembranças de Belmiro estarão sempre associadas à vida rural, na qual passou a infância, sob o jugo da ordem familiar, na fazenda de seu pai. Esse será um mundo perdido, repleto de lirismo, no qual o narrador coletou suas primeiras impressões da vida, que hoje o ajudam a compreender o presente. Em outras palavras, memórias de Vila Caraíbas filtrarão sua percepção da realidade em que vive: a vida urbana na cidade de Belo Horizonte, o trabalho burocrático, o círculo de amigos.

Para Belmiro, sua vida em Belo Horizonte divide-se entre dois ambientes: o doméstico, compartilhado com as duas irmãs e que lhe evocam a vida antiga, na Vila Caraíbas: “Ainda assim, tão distantes de mim, encheram minha vida, e Emilia é, nesta casa, uma presença vigorosa e viril, que restabelece a atmosfera moral da fazenda”; e o do trabalho, povoado pelos amigos e marcado pela situação histórico-social do país.

Personagens

Belmiro Borba, amanuense, trinta e oito anos, alto, magro, funcionário público, protagonista e narrador. Usa pince-nez e se veste à antiga. Ousado nas brincadeiras e conversas maliciosas com as donzelas, mas na verdade é um tímido e incompetente para conquistas amorosas efetivas: “Não lhes contei que é um dos meus fracos dar certo tom picante às conversações com moças donzelas. Dificilmente isso se concilia com as minhas inclinações líricas, mas a contradição é da vida.” (p.6l) Não tem partido, nem religião, cuida das irmãs e procura conservar os amigos. Passa pela vida como quem observa e não como quem vive. Ideologicamente assim se define: “Escreverei também que não me falta simpatia humana e muito me preocupam os males do mundo. A injustiça social me dilacera a sensibilidade. Mas há, em mim, escrúpulos de espírito e de sentimento que não aceitam radicalismos revolucionários.” (p.l09)

Jandira, amiga do protagonista, vive com sua tia Hortênsia e participa do grupo de homens como mulher liberada, socialista e intelectual. Tem vinte e cinco anos, mas apresenta um corpo de dezenove: “aos vinte e cinco anos, tem a mesma graça leve e a mesma carne ágil dos dezenove”. (p.108) Há, no capítulo 26, dois fragmentos que definem bem a estrutura psicológica da personagem: “Jandira desnorteia a gente. Em palestra, tem admitido que abordemos temas perturbadores e, de boa vontade, ouve anedotas fortemente temperadas. (...) Entretanto, não suporta um olhar de desejo. Ruboriza-se, compõe-se, reage, se for preciso. Certa vez Silviano, a pretexto de despedir-se, tentou abraçá-la e levou carão. E partidária do amor livre e de todas as outras liberdades, mas defende-se como leoa, sempre que está em xeque.» (p.6l)

Emilia, irmã do protagonista, a quem tem a mania de chamar de excomungado. Quando toma refeições com ele, põe entre ambos um anteparo de papelão para não ter que vê-lo. E é a Francisquinha que é louca! É dura, áspera, mas garante o narrador que é tudo couraça, pois no fundo deve ter um coração mole e amoroso, como seu pai, o velho Borba.

Francisquinha, irmã louca, que dá muito trabalho a Belmiro e Emilia, mas ambos têm por ela muito carinho e dedicam-lhe muitos cuidados e atenções, quando em suas crises nervosas.

Glicério, é o mais recente dos amigos de Belmiro, também colega do serviço público. É conhecido da família de Carmélia. Moço fino, de tendências aristocráticas, é apresentado pelo narrador como um janota.

Carmélia, jovem muito clara, muito fina, órfã de pai. Mora com a mãe e um irmão menor. É quem coloca em turbilhão as fantasias do narrador a partir de um baile de carnaval.

Silviano, casado com Joana, tem mania de trocar o nome de todo mundo, adora mentiras e armações. E intelectual, professor, caça as menininhas, mas paradoxalmente defende a ascese como modo de vida atual. Belmiro o classifica como “homem da hierarquia intelectual e da torre de marfim”.

Florêncio, amigo do círculo de Belmiro, definido por este como “tranqüilo pequeno burguês, de alma simples, que não opina”, mas que gosta muito de um chope.

Temática

O tema maior de quase toda narrativa em primeira pessoa é a tentativa de se conhecer, é a resposta à pergunta “quem sou eu?”. Pergunta essa, aliás, formulada de modo explícito por Belmiro em um dos momentos de suas anotações. No final de seu diário, questiona-se ainda ele: “que vim fazer neste mundo?”. Não encontrando resposta, compara-se a certos arbustos da caatinga nordestina que parecem de nada servir a não ser compor a paisagem. Outro tema que reaparece insistentemente é o da passagem inexorável do tempo: “Nada mais depressivo que sentir outras gerações surgirem depois da nossa e nos disputarem espaço.” (p.42)

A temática de que o essencial é invisível aos olhos também se apresenta nas reflexões de Belmiro. A vida é feita de aparência e o essencial é difícil ou inacessível: “A realidade é a aparência, e o que é - no fundo - não o é para nós”. Podemos encontrar, também, uma crítica à vida ociosa do funcionalismo público: “‘O Secretário está fora, e temos pouco serviço.’ (Na verdade nunca tivemos serviço, e jamais conheci ficção burocrática mais perfeita que a Seção do Fomento...)” (p.23)

Percebe-se ainda o tema da sincronicidade, segundo a qual, muitas vezes, fatos e situações, aparentemente acidentais, estão combinados para um determinado acontecimento posterior: “Há, sem dúvida, uma trama secreta que, encadeando os acontecimentos, envolve uma química, uma física e uma economia social extremamente sutis para que a ciência humana possa penetrá-las.” (p.25) Sob esse ponto de vista, o acaso ou acidente deixa de existir, e tudo o que nos acontece passa a fazer parte de um plano, ou trama, em que todos os elementos se encaixam, embora nós não consigamos perceber.

Após o término da leitura de O amanuense Belmiro, ficamos com a impressão de que Cyro dos Anjos impôs a si próprio outro desafio, mais instigante, escrever sobre o nada, sobre o vazio Belmiro não tem sequer uma ação concreta, vital. Não, a única aventura que se lhe apresenta é recuperar o mundo caraibano, coisa que ele abandona logo no início, porque percebe que o presente interfere a todo momento. Resolve escrever sobre o seu presente mas ele “se entrega ao presente; mas não o vive”. (p.XV) O que se segue é um muito carinho e dedicam-lhe muitos cuidados e atenções, quando em suas crises nervosas.

Enredo

Belmiro Borba, solteirão tímido e sonhador, dotado de grande capacidade de analisar a si e aos outros, que vive modestamente em Belo Horizonte com duas irmãs, Emilia e Francisquinha, "as velhas", numa noite de Natal resolve escrever uma espécie de diário, para registrar o cotidiano e evocar a infância e com o qual pretende resgatar o mundo de Vila Caraíbas, onde nasceu, cuja saudade o persegue como doce obsessão. Vive atualmente como funcionário público.

Vemos então o desenrolar de suas meditações, o seu convício com os amigos Redelvim, Silviano, Glicério e Florêncio, além de Jandira, uma mulher liberada. Com o passar do tempo e das anotações, o narrador-protagonista deixa de lado sua intenção inicial converte o caderno de anotações em um diário em que vai registrando não o passado, mas o presente, com seu grande vazio existencial.

Durante o ano de 1935, o narrador vai registrando os acontecimentos que se relacionam com sua vida, a loucura de Francisquinha, os achaques de Emilia, os problemas da amiga Jandira, suas fantasias com a moça da Rua Paraibuna, Carmélia, com quem imagina casar-se. A moça, no entanto, casa-se com Jorge.

Em tudo se nota que Belmiro foge à ação por meio do sonho e da reflexão, dissolvendo de certo modo a realidade pela excessiva aplicação da inteligência.

O círculo de amigos vai se rompendo, Francisquinha falece e a vida do amanuense vai se fechando sem perspectiva de melhoria ou de mudança. Assim, ele encerra seu diário porque não vê mais nada que lhe pareça digno de ser anotado.

Fonte original:
www.passeiweb.com.br

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