quarta-feira, 10 de novembro de 2010

SENHORA - José de Alencar

SENHORA
José de Alencar

José de Alencar
      Embora apresente alguns elementos característicos do Realismo, Senhora é um romance basicamente romântico.
      Dos prosadores românticos da literatura brasileira, Alencar sem dúvida desponta como o mais importante dentre eles, não só pelo seu nacionalismo, dando prioridade à temática brasileira como pelo seu estilo vigoroso, elegante e pomposo, que sobressai dentre seus contemporâneos.

      Sua obra de ficção é vasta e fecunda, e destaca-se o romance como seu principal melo de expressão. A crítica costuma dividir os seus romances em quatro categorias:
a) indianistas: O Guarani, Iracema, Ubirajara;
b) históricos: As Minas de Prata, A Guerra dos Mascates, Alfarrábios;
c) regionalistas: O Gaúcho, O Sertanejo, O Tronco do Ipê.
d) urbanos: A Viuvinha, Diva, A Pata da Gazela, Sonhos d’Ouro, Lucíola, Senhora, Encarnação.

      Os romances urbanos, que nos interessam mais de perto, têm corno cenário a corte, ou seja a cidade do Rio de Janeiro do Segundo Reinado... É neles que se mostram com maior evidência os ingredientes amorosos românticos, como atesta o ferrenho alencariano, Oscar Mendes: "Como no período romântico não se compreendesse um romance que não tivesse uma intriga amorosa, todos os romances urbanos de Alencar são romances de amor, do amor, como entendia a mentalidade romântica da época, um amor, sublimado, idealizado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos e até de crimes, mas redimindo-se pela própria força acrisoladora de sua intensidade e de sua paixão.”
      Publicado em 1875, Senhora é um dos últimos romances de Alencar.

Análise

                O romance pode ser considerado uma das obras-primas de seu autor e uma das principais da literatura brasileira. Uma vez que trata do tema do casamento burguês, ou seja, baseado no interesse financeiro, pode ser considerada precursora do Realismo ou pré-realista.
Alencar classifica a obra dentro de seus “perfis de mulher”, já que concentra na mulher o papel mais importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurélia é a protagonista do romance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo pelo homem que ama.
A personagem Aurélia Camargo é idealizada como uma rainha, como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos elementos exteriores - é típica do narrador observador. Tal caracterização, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a do maniqueísmo romântico e acrescentando-lhe traços realistas.
O conflito entre os protagonistas gera momentos de grande emoção e sofrimento. É desse embate entre o desejo de vingança e o desejo de amar em plenitude que nasce a ação psíquica que se transforma em enredo. Se a temática e o psiquismo da obra representam antecipações realistas, ambos fortemente consolidados pela evidente critica de uma sociedade que valoriza mais a aparência e o dinheiro que os sentimentos humanos, a idealização das personagens reflete o universo romântico presente na obra. O desenlace configura, por si só, a vitória do Romantismo em Alencar sobre a possibilidade realista.
Para melhor entendermos a obra, devemos perceber as interações do artista que a criou. Alencar acreditava sinceramente na vitória do homem na reforma de si mesmo e da sociedade. Não havia nele ainda o traço de pessimismo profundo e de ceticismo que tantas páginas maravilhosas fizeram nascer em Machado de Assis. É dessa crença nos sentimentos humanitários que bruta o Romantismo alencariano, do qual bruta a força vital de suas personagens. Divididos entre o ódio e o perdão, a necessidade financeira e os apelos do coração, vencem sempre os segundos. O mesmo caso pode ser observado na construção do romance Lucíola, mas com um final trágico. Em ambos os romances a premente necessidade do dinheiro, veículo central de uma sociedade aristocrática e burguesa, obriga personagens a trocarem seus sentimentos por dinheiro. O grande vilão, o antagonista, é sempre a sociedade e seus hábitos doentios e seus costumes imorais. Se é essa a pretensão do autor, o seu recado para a sociedade de seu tempo, devemos classificar Senhora com um romance de costumes. Se o cenário das personagens é o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, podemos também considerá-lo como um romance urbano com traços de psicologismo e critica social.

Estrutura da obra

Senhora é um romance dividido em quatro partes e não obedece uma ordem cronológica, isto é, a primeira parte (O Preço), narra os episódios atuais, enquanto que a segunda parte (Quitação), fala-nos do passado de Aurélia, seguem os capítulos: Posse e Resgate. A narrativa é feita por um narrador que parece penetrar na alma de Aurélia Camargo para transmitir suas confidências mais intimas.
Esses títulos contrariam ostensivamente o espírito de uma história de amor, como efetivamente é o romance Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado pelos hábitos sociais, fica clara a idéia de que os títulos foram assim escolhidos para hipertrofiar a metáfora contida no livro. Eles explicitam, em tom caricatural e hiperbólico, a idéia de que a compra efetuada por Aurélia é uma metáfora do casamento por interesse, muito corrente na época, mas sempre disfarçado por elegantes e frágeis encenações sociais.


Enredo

                Na primeira parte, O Preço,  Aurélia Camargo dá a conhecer para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. A principal ação desta primeira parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recém-chegado na corte após uma longa viagem ao Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma aura de mistério cobre o pedido, pois Fernando não deve saber a identidade da pretendente e além disso a quantia do dote proposto deve ser irrecusável: cem contos de réis ou mais, se necessário.
A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a péssima situação financeira de Fernando - moço elegante mas pobre, que gastou o espólio deixado pelo pai e que precisava restituí-lo à família para a compra do enxoval da irmã - fazem com que dêem certo os planos de Aurélia.
Na noite de núpcias, Fernando se surpreende ao ver nas mãos de Aurélia, um recibo assinado por ele aceitando um adiantamento do dote. Aurélia se enfurece, acusa-o de mercenário e venal. E ela começa a contar a vida e os motivos que a levaram a comprá-lo.
Na segunda parte, Quitação, conhecemos a vida de ambos os protagonistas. Aqui há um retorno aos acontecimentos em suas vidas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurélia em relação a Fernando.
Na terceira parte, Posse, a história retorna ao quarto do casal. Vemos Fernando arrasado de vergonha, mas Aurélia toma o seu silêncio como cinismo. É o início da fase de hipocrisia conjugal.
Na quarta parte, Resgate, temos o desenrolar da trama. Intensificam-se os caprichos e as contradições do comportamento de Aurélia, ora ferina, mordaz, insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta, doce, apaixonada. Intensifica-se também a transformação de Fernando, que não usufrui da riqueza de Aurélia, tornando-se modesto nos trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, e assim adquirindo, sem perder a elegância, uma dignidade de caráter que nunca tivera.
No final, Fernando, um ano após o casamento, negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve-lhe os vinte contos de réis, que correspondiam ao adiantamento do montante total do dote com o qual possibilitava o casamento da irmã, e mais o cheque que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de réis, na noite de núpcias.
Separam-se, então, a esposa traída e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a última recusa de Seixas sendo debelada quando Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quando casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna.
O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elementos romanescos e da realidade. Foco narrativo - O romance é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, ou seja, que tudo sabe sobre as personagens, penetrando em seus pensamentos e em sua alma. Esse narrador é também intruso, já que interfere em vários momentos, apresentando-se ao leitor.      
A técnica narrativa empregada por Alencar em Senhora é sem dúvida bem moderna, se tomarmos como base suas obras anteriores, já que o autor utiliza digressões.

Tempo - O tempo é cronológico, tomando como base o século XIX, durante o Segundo Império. Entretanto, não há linearidade, já que a história é contada a partir de flash-back.

Espaço - O espaço central da narrativa é Rio de Janeiro.

Personagens

                As personagens são bem construídas e já apresentam certa profundidade psicológica. Ao contrário de várias personagens românticas, não constituem meros tipos sociais, já que são capazes de atitudes inesperadas.

1. Aurélia Camargo: Moça pobre. Aurélia é decente e apaixonada por Fernando Seixas. A decepção amorosa transforma-a numa mulher vingativa e fria, mas que não consegue disfarçar seu verdadeiro sentimento por Seixas. Seu comportamento é típico de uma esquizofrênica, já que se vê dividida entre sentimentos contraditórios até o final do romance. O amor parece ser sua salvação, redimindo-a de perder o homem que ama por causa de seu orgulho.

2. Fernando Seixas: Jovem estudante de Direito, bem vestido e apreciador da vida em sociedade. A falta de dinheiro o conduz a acreditar que a única maneira de evitar a ruína final é casando-se com um bom dote. Envolvido pelo amor de Aurélia, chega a pensar em abandonar os hábitos caros, mas acaba percebendo que não consegue viver longe da sociedade. Depois do casamento por interesse, é humilhado, arrepende-se e consegue resgatar o dinheiro que recebeu a Aurélia.

3. Dona Emília: Viúva, mãe de Aurélia. Mulher honesta e séria, que amargou imenso sofrimento por causa de seu amor por Pedro Camargo.

4. Pedro Camargo: Pai de Aurélia, filho natural de um rico fazendeiro do interior de São Paulo, de quem nutria grande medo. Morre à mingua por não conseguir confessar seu casamento contra a vontade do pai.

5.  Lourenço Camargo: Avô de Aurélia. Pai de Pedro. Homem duro e rústico, mas que procura ser justo depois que descobre a existência do casamento do filho.

6.   D. Firmina: Parente distante de Aurélia e que lhe serve de companhia quando fica rica.

7.  Lemos: Tio de Aurélia. “Velho de pequena estatura, não muito gordo, mas rolho e bojudo como um vaso chinês. Apesar de seu corpo rechonchudo tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe dava petulância de rapaz, e casava perfeitamente com seus olhinhos de azougue.” Foi escolhido por Aurélia como tutor porque a moça podia dominá-lo facilmente.

Pontos importantes para observar:
·         Fernando e Aurélia e o casamento de conveniência
·         Aurélia: mistura de anjo e demônio, de bondade e de maldade
·         Aurélia: horror ao interesse financeiro mas usa o dinheiro para vingar-se
·         O poder regenerador do sentimento amoroso
·         Fernando regenerado: fruto da sociedade
·         Lemos: tutor, é um pelintra e interesseiro.
·         O avô Lourenço Camargo é um fazendeiro rude, mas correto
·         Dona Firmina: dama de companhia de Aurélia, gorda e dominada por Aurélia
·         Emília: mãe de Aurélia, personagem com características ultra-românticas, abandona tudo por amor e nada exige
·         O amigo Torquato, que apóia Aurélia nos tempos de pobreza.
·         Eduardo Abreu, moço rico e apaixonado por Aurélia desde os tempos de pobreza
·         Enquanto os personagens principais têm cunho universalista, os personagens secundários apresentam cor local
·         Com os personagens secundários se tem um retrato da sociedade brasileira da época:
·         A degradação transformada em “coisas da vida”, a dialética moral do dinheiro que compra marido, mas não afeta o rico fazendeiro, as mães burguesas, as regras do favor
·         A cópia do modelo europeu segundo a maneira do europeu, gerando as dissonâncias entre o cosmopolitismo e o localismo
·         Através das personagens secundárias, a sociedade brasileira se revela em suas atitudes de colonizada

Estilo de época e individual
Alencar não destoa do Romantismo em voga. A sua visão de mundo é baseada na emoção, e o mundo urbano, com seus problemas políticos e econômicos, o aborrece, por isso foge para o passado; escapa para os lugares selvagens. Suas obras procuram retratar um Brasil e personagens mais ideais do que reais, mais como ele gostaria que moralmente fossem (românticos e moralistas) do que objetivamente eram (realistas). Senhora é um romance de características definidas de forma romântica, mas que já traduz uma temática realista: a crítica ao casamento burguês.

Problemática e principais temas
O conflito amoroso entre os protagonistas nasce desse choque entre os sentimentos e o interesse econômico. Aurélia Camargo é uma mulher de personalidade forte, carregada de sentimentalismo romântico. Daí sua contradição, sua personalidade marcada por extremos psíquicos: dá maior valor aos sentimentos, mas vale-se do dinheiro para atingir seu objetivo de obter o grande amor de sua vida, Fernando Seixas. Dessa forma, o dinheiro acaba impondo o valor burguês que lhe era atribuído na sociedade do século XIX. A realização amorosa só se cumpre depois de Aurélia vencer a aparente esquizofrenia que parece conduzi-la á dúvida quanto às intenções de Fernando Seixas. O comportamento esquizóide manifesta-se nas atitudes antitéticas de desejar o amor do marido com todas as suas forças, mas lutar contra o mesmo até suas últimas reservas

Um comentário: