quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Gabarito - Simulado de literatura UESB

GABARITO DO SIMULADO (Uesb)

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03) 02
04) V-V-V-V 
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Invenção de Orfeu - Jorge de Lima


INVENÇÃO DE ORFEU
Jorge de Lima

O projeto poético de Jorge de Lima, em Invenção de Orfeu, parece se revelar por meio da busca de algo inalcançável. A ilha como metáfora chave do poema está estreitamente relacionada à busca do poeta (do homem) por algo não acabado e não realizável: o absoluto, a felicidade plena, o resgate do tempo original após a Queda. A navegação empreendida pelo poeta é a mesma de cada ser humano no decorrer de sua própria vida, em busca de suas realizações íntimas e sociais. À busca pessoal, soma-se o caráter metalingüístico de Invenção de Orfeu. Nesse sentido, a vida e a obra caminham juntas, sem que seja possível separá-las; é por isso que em todo poema estão presentes tanto a geografia brasileira como a própria biografia do poeta, ambas amalgamadas no poema que explica a si próprio.
Como Orfeu despedaçado após o ataque das Menades, Jorge de Lima constrói seu poema através de fragmentos líricos, míticos, oníricos, históricos, biográficos, metafísicos, religiosos. Em busca de uma harmonia mítica, quer transformar o caos presente em um cosmos futuro, perspectiva esta que encerra todo o poema. Desejo utópico que percorre Invenção de Orfeu, situando-o no terreno do sonho. Numa espécie de eterno retorno, dado pela circularidade do poema e pela imagem da espiral do tempo e do espaço, o poeta tenta resgatar o início dos tempos a partir de metáforas referentes ao paraíso perdido e ao éden cristão, da memória infantil, do poder encantatório órfico e também do sonho, que se revelam por meio da linguagem renovada e das metáforas inusitadas, comparadas às do início da nomeação das coisas. Desse modo, o poema se compõe pelo cruzamento de temas e situações que reaparecem de várias formas ao longo de cada trecho.
Invenção de Orfeu apresenta-se, muitas vezes, de forma obscura justamente devido essa tentativa do poético reviver uma linguagem perdida há muito tempo, uma linguagem mágica cantada por um poeta ébrio, que se associa (de modo direto) à poesia moderna no questionamento que esta faz da linguagem usual. Nesse sentido, o poeta assemelha-se, muitas vezes, à figura do mago e do profeta, daquele capacitado a criar através de seus poderes mágicos um mundo e um poema redimensionado, que se aproxima da tentativa surrealista de dar corpo à utopia das palavras em liberdade. Isso prenuncia a essência poética intrínseca a todo homem.
De forma geral, podemos dizer que a utopia está na essência da literatura. É por meio da literatura que a utopia se assume como realidade palpável, seja como retorno ao passado, a um tempo e a um lugar de perfeição, seja como redimensionamento do tempo e do espaço. Mas é por meio da transfiguração da realidade que a utopia se apresenta de maneira mais direta nos textos. Assim, a utopia pode ser considerada imanente à literatura. Mas isso não quer dizer que a utopia literária seja apenas um veículo que, impreterivelmente, direcione o leitor e/ou o autor da obra literária a uma espécie de evasionismo do mundo real, levando ambos a uma alienação total do mundo. Ao contrário, esse utopismo proporciona uma percepção aguçada da realidade, revelando a sua imperfeição. E é por meio dessa idéia que podemos concluir que esta vida não basta e que precisamos almejar um mundo melhor, seja por meio da criação poética, seja pela transformação do próprio mundo. A partir dessa constatação, vemos que a utopia literária não se dá apenas no plano ficcional, mas é parte integrante da realidade concreta, apontando o desejo do encontro do homem com o sonho da perfeição.
O pensamento moderno criticou e deixou de lado o pressuposto cristão da conquista de um reino paradisíaco através da morte, ideologia que prometia o paraíso no além mundo. Esse pensamento dava ensejo à reconquista deste tipo de sociedade ideal através das revoluções no futuro próximo. O século XX se inspirou nos pensamentos do século XVIII, e suas utopias foram refletidas em nossas revoluções sociais. Após o reconhecido fracasso das tentativas modernas de instalar utopias por meio de horrores e/ou ditaduras, esse desejo utópico sofreu um significativo abalo. Nesse mundo conturbado, repleto de transformações sociais, avanços tecnológicos e altamente industrializado, onde há o apagamento do ser e a desumanização é a regra, Jorge de Lima paradoxalmente constrói seu poema a partir de uma série de características de forte apego cristão.
Desse modo, Invenção de Orfeu como representante legítimo da literatura moderna combate esta situação inaceitável espelhando sua realidade fragmentada, desprovida de valores e sem utopia. Assim, o poeta, em sua obra, aponta alguns caminhos para a reversão dessa situação através da emoção estética, da ampliação do imaginário humano, do redimensionamento do verbo, do sentimento de fraternidade, do auto-conhecimento e da visão crítica do mundo. Portanto, estas perspectivas valorizadas pelo poeta se apresentam como parte de um projeto utópico importante para que o homem não se sinta completamente perdido no caos do mundo.
O poeta presenciando as conturbações do século tende a se afastar da representação realista desse mundo partindo para uma perspectiva onírica e mítica na tentativa de recuperar a linguagem original e o paraíso perdido. O poeta se associará a um cristianismo primitivo, em que a solidariedade ao homem é a regra. Dessa maneira, o poeta também se associa aos preceitos da fraternidade universal preconizados pelas correntes revolucionárias deste século. Em Invenção de Orfeu, vemos um “modelo de sobrevivência” fundamentado na fraternidade universal buscado na linguagem do sonho, no mito, no amor, na esperança, no paraíso perdido, na linguagem do tempo da origem. O poeta é um ser que não se enquadra na sociedade de seu tempo, em que o seu valor primeiro é marcado pela desumanização e pela falta de solidariedade. Nesse mundo, o poeta encontra-se perdido e lança-se à busca do divino e do sobrenatural para tentar alcançar a paz. Mesmo assim, ele parece não conseguir o pretendido, pois é um ser constantemente atormentado.
A missão do poeta é resgatar a palavra originária degradada pelo decorrer do tempo histórico, juntamente com a degradação do homem. Desse modo, como é anunciado em seu canto primeiro, o poeta é um ser assinalado por Deus, que cumpre seu destino de ininterruptamente (noite e dia) amar e louvar a poesia “que é de aquém e de além-mar/a ilha que busca e o amor que ama.” Nesse sentido, Invenção de Orfeu apresenta-se com o poder revificador e libertador do mundo que se mostra hostil elevando-o de uma realidade mortal para um mundo liberto da temporalidade e do espacial, o mundo da ubiqüidade.
Em um mundo “sem cor”, o poeta reivindica um novo mundo, uma idade de ouro, da época da inocência e de uma ordem mítica para se integrar novamente a natureza e à plenitude. Sua imaginação flui na busca desse mundo renovado e metafísico que dialeticamente se relaciona com o mundo sensível, orientado para uma sensibilidade nova, superior ao mundo restrito do racional. Desse modo, o poeta aumenta o campo de sua atuação e passa a estabelecer contato com o universal e o cósmico. Para isso, ele se utiliza do mítico, do sonho e da memória da infância na tentativa de reelaborar o caos do mundo presente em um novo cosmos.
É nesse sentido que a poesia de Jorge de Lima constrói sua epopéia moderna em que o nauta está em busca de um ambiente purificado. Para atingi-lo, em seu percurso, estabelecem-se lutas com o trágico e com o tormentório, elementos próprios do mundo moderno que o poeta não pode deixar de enfrentar. Mas sua poesia só será viável se o poeta encontrar uma nova forma, uma ordem pessoal consubstancial ao poema. Para realizar esse projeto, o poeta já não pode se deter em descrições e narrativas históricas, mas sim apelar para o plano do maravilhoso. O poeta moderno quer substituir este mundo presente por outro, “mais verdadeiro, que seja como a síntese confusa de seus desejos e venham abrandar um instante uma sede do absoluto que às vezes se ignora e se perde em aventuras estranhas.”

Texto de Luciano Marcos Dias Cavalcanti